domingo, 20 de abril de 2014

Como estimular o cérebro a combater a obesidade.


Se você saliva diante do melhor chocolate do mundo, mal pode esperar pela próxima viagem, deseja a mulher do vizinho ou o novo estagiário, agradeça ao seu hipotálamo. Essa estrutura minúscula, que ocupa menos de 1% do cérebro, é responsável pela cor e pelo sabor da vida. Está envolvida no controle da libido, das emoções, do sono, da temperatura corporal e de muitas outras funções essenciais. São quatro gramas de pura nobreza. Quatro gramas. Esse é o peso do hipotálamo.

O meu espanto diante da natureza cresce a cada dia. Em grande parte por causa de informações e descobertas derivadas da neurociência. Na próxima semana, ela será responsável por mais um avanço impressionante. Pela primeira vez no Brasil, um eletrodo será implantado no cérebro de uma pessoa com o objetivo de combater a obesidade.
  
A cirurgia está agendada para quarta-feira (23) no Hospital do Coração (HCor). É um trabalho de altíssima precisão. O eletrodo mede 1,8 milímetro de diâmetro e será instalado no núcleo do hipotálamo que controla a saciedade e o metabolismo energético.
   
Sim, ele também é responsável por isso. Se você precisa de um filé de 400 gramas para se sentir satisfeito ou se abandona os talheres depois da quarta garfada, saiba que essa decisão foi orquestrada em algum lugar daquelas quatro gramas de tecido cerebral. 

Essa primeira cirurgia marca o início de um estudo clínico liderado pelo casal de neurocirurgiões Alessandra Gorgulho e Antonio De Salles. O trabalho é financiado pelo Ministério da Saúde e pelo instituto de ensino e pesquisa do HCor.

Alessandra se formou no HCor e passou dez anos nos Estados Unidos. É professora associada da Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Ela e o marido resolveram aceitar o convite para voltar ao Brasil e liderar a equipe do novo centro de neurocirurgia, recém-inaugurado pelo hospital.
O objetivo desse primeiro trabalho é usar impulsos elétricos para estimular um maior gasto calórico em obesos que não conseguem emagrecer de outra forma. O primeiro paciente é um homem com obesidade severa. Seu índice de massa corpórea (IMC) é 50. Pessoas com peso normal têm IMC entre 18,5 e 24,9. A partir de 40, a obesidade já é considerada mórbida.

Na primeira etapa do estudo, os cientistas vão avaliar se o método é seguro e tolerável. Apenas seis voluntários serão admitidos nessa fase. O processo de seleção continua aberto, mas os candidatos precisam estar na faixa dos 18 aos 60 anos, não ter diabetes e se enquadrar em outros critérios de saúde.

Só nas etapas seguintes a eficácia do método será testada. Mesmo que tudo dê certo, ainda serão necessários alguns anos até que a técnica esteja disponível comercialmente. Se ela prosperar, será uma alternativa para os casos em que o paciente não está disposto a se submeter à cirurgia de redução de estômago. Ou para os casos em que nem ela foi eficaz.

“Não adianta achar que o paciente muito obeso vai emagrecer com os recursos disponíveis hoje”, diz a pesquisadora Alessandra Gorgulho. “A cirurgia bariátrica não funciona em cerca de 20% dos pacientes operados. Muitos emagrecem, mas passam a sofrer de anemia, vômitos, diarréia etc.”

A intenção do grupo é avaliar se o implante de eletrodo no cérebro pode ser tão eficaz quanto a cirurgia bariátrica. Ou, pelo menos, permitir algum emagrecimento com menos complicações. Os principais riscos do implante de eletrodo são infecção (ocorre em cerca de 2% dos casos) e hemorragia (0,8%).

“Não espero ver um emagrecimento absurdo no primeiro ano”, diz Alessandra. “No caso do primeiro paciente, acredito que possa ocorrer 6% de perda de peso a cada trimestre.”

Desde os anos 40, experimentos em animais demonstram que provocar uma lesão cirúrgica ou por radiofrequência no hipotálamo altera o hábito alimentar. Os bichos passam a comer sem parar ou se tornam totalmente desinteressados pela comida. Em humanos, não se deseja uma coisa nem outra. Daí a necessidade de encontrar uma forma menos radical de agir sobre o hipotálamo.

A estimulação cerebral profunda é usada desde o final dos anos 90 para aliviar outros problemas de saúde, como o Mal de Parkinson, a depressão e uma forma grave de dor de cabeça, chamada de cefaléia em salvas.

Na Itália, um dos pacientes submetidos à estimulação por causa da cefaléia perdeu 25 quilos. Com o registro de outros casos semelhantes, cientistas de diversos grupos passaram a acreditar que a técnica poderia ser utilizada também para combater a obesidade.

Em animais, a hipótese se confirmou. A estimulação do hipotálamo com o eletrodo provoca aumento do consumo energético mesmo que eles continuem ingerindo a mesma quantidade de comida.

Alessandra estudou os efeitos do eletrodo em porcos. Os animais foram separados em dois grupos. O eletrodo foi implantado no cérebro de todos, mas a estimulação só foi ligada em um dos grupos.

Os pesquisadores ofereceram o dobro da quantidade de ração que os animais precisam para viver. Todos, exceto um, comeram tudo. Se mais comida fosse colocada à disposição deles, provavelmente eles continuariam comendo. Exatamente o que acontece com as pessoas que exageram na comida.

O mais interessante do estudo com os porcos: mesmo sem modificar a ingestão alimentar, os cientistas conseguiram alterar o gasto calórico. Ou seja: o eletrodo acelera o metabolismo. “Os animais que receberam a estimulação ganharam menos da metade do peso do outro grupo”, diz Alessandra.

Num outro estudo,  com macacos, o grupo estimulou o hipotálamo com parâmetros elétricos diferentes dos que serão usados em humanos. Com isso, observou que era possível alterar até mesmo a preferência alimentar dos animais. Quando o eletrodo era ligado ou desligado, eles escolhiam comer frutas ou biscoitos.

No ano passado, pesquisadores da Universidade West Virgínia publicaram um trabalho feito com três pacientes obesos. Eles receberam o eletrodo numa área do hipotálamo diferente daquela que será estimulada por Alessandra.

Os cientistas concluíram que o método é seguro, mas os voluntários não tiveram perda de peso expressiva. “Acho que não deu certo porque eles variaram um pouco o local que escolheram para estimular. Qualquer variação pode comprometer os resultados”, diz.

Há outra hipótese: esse sofisticado sistema de fome e saciedade é fundamental para a preservação da espécie humana. Será que ao notar uma alteração no padrão de gasto calórico ele rapidamente se reorganiza para voltar a poupar energia?

Nossa capacidade de acumular energia em forma de gordura garantiu a sobrevivência da espécie no tempo das cavernas e nos milênios de frio e miséria que vieram depois. Nas poucas últimas décadas, o que era vantagem evolutiva se tornou desvantagem no mundo ocidental. Talvez seja mais fácil mudar o ambiente do que convencer o cérebro a alterar o que deu certo durante tanto tempo.

CRISTIANE SEGATTO, em Época

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