quinta-feira, 16 de junho de 2016

Sopa de pedra

Sopa de Pedra do Rancho Português, São Paulo - Foto: divulgação
Sopa de Pedra do Rancho Português, São Paulo – Foto: divulgação

SOPA DE PEDRA
Quem já tem os cabelos brancos não esquece o quanto se divertiu na infância com as histórias de Pedro Malasartes, personagem de uma saborosa fábula europeia e americana. Faz jus ao nome, que vem de “artes más”. Herói pobre, travesso e trapaceiro, apesar de simpático, fascinava as crianças nos tempos em que elas ouviam histórias das avós, a TV era incipiente e o tablet não existia sequer na ficção científica. Malasartes ludibriava todos os que cruzavam seu caminho e sempre levava a melhor diante dos ricos. Em uma das suas aventuras mais divertidas, preparou uma sopa de pedra.
Cansado de vaguear por estradas e ruas, bateu na porta de uma mulher idosa avarenta. Estava faminto. “Consiga-me alguma coisa para comer”, pediu. Apesar de ter o galinheiro repleto, a horta exuberante e as árvores carregadas de frutas, ela respondeu não dispor de nada. “Sendo assim, vou fazer uma sopa de pedra”, resignou-se Malasartes, que pegou uma pedra no chão, lavou e pediu uma panela de barro e um fogão para cozinhar. “Ora, essas coisas eu tenho”, resmungou a mulher.
Sopa de Pedra de Almeirim - foto Reinaldo Mandacaru
Sopa de Pedra de Almeirim – foto Reinaldo Mandacaru
Malasartes acendeu o fogo, colocou uma panela em cima, incorporou a pedra e encheu o aquele utensílio de água.  Quando começou a ferver, provou-a. A mulher não lhe tirava os olhos. “Ótima sopa”, garantiu. “Mas ficaria melhor se tivesse um pouco de gordura”. Mesmo desconfiada, a mulher entrou na casa e voltou com um pedaço de toucinho. Malasartes jogou a gordura na panela, provou a sopa de novo e fez um gesto de aprovação.
Depois, foi pedindo sucessivamente orelha de porco, morcela, feijão-mulatinho, batata, couve, sal, coentro e pimenta-do-reino, sendo atendido. Finalizada a sopa, ofereceu um prato à mulher. Ela tomou e exclamou:. “Puxa, que bom!”. Na panela, sobrou apenas a pedra. Malasartes a lavou, secou e guardou no bolso. Intrigada, a mulher perguntou o que ia fazer com a pedra. “Vou carregar comigo para fazer outra sopa no dia em que precisar enganar outra velha boba”, alfinetou, saindo em disparada. Moral da história: o pobre pode ser esperto; o rico, tolo.
Malasartes pode ter estreado em uma coletânea de cantigas medievais, escrita em galaico-português. Depois, apareceu em livros espanhóis do século 16, com o nome de Pedro de Urdemalas (vindo de “urde males”, planeja maldades); no Chile e México, tornou-se Pedro Urdemales; na Argentina, Bolívia, Paraguai, Peru e Venezuela virou Pedro Rimales. Em todos esses países, incluindo o Brasil, faz a sopa de pedra, exceto em Portugal, onde o personagem da fábula é um frade mendicante. Proibido pela sua ordem religiosa de amealhar bens materiais, ele vivia da caridade alheia.
Mas foi em Portugal que começaram a explorar comercialmente a sopa de pedra. A cidade de Almeirim, na região do Ribatejo, converteu-a em atração turística. Vários restaurantes a preparam, inclusive O Estribo, cuja receita publicamos abaixo. Visitantes de toda a parte aparecem para saboreá-la. Chegou a ser um dos pratos finalistas, em 2011, no concurso que elegeu as sete maravilhas da gastronomia lusitana.
Uma novidade é que o restaurante Rancho Português, de São Paulo, estará oferecendo à clientela, a partir da próxima terça-feira, dia 21 de junho, um prato inspirado na receita de Almeirim. Permanecerá no cardápio até o fim do inverno. Obviamente, leva ingredientes substanciosos – feijão, batata, orelha de porco, chouriço, morcela, toucinho, cebola, alho, louro, coentro, pimenta-do-reino e sal. Como sempre, a pedra é apenas um pretexto, um símbolo da  malandragem.
Astucioso e cínico, especialista em enganar avarentos e simplórios, Malasartes debutou em “Contos da Carochinha”, de Figueiredo Pimentel, lançado em 1894, primeiro livro  infantil editado no Brasil. No começo do século 20, foi protagonista de duas óperas nacionais: uma de Camargo Guarnieri e Mário de Andrade, em 1932; outra, de Lorenzo Fernández e Graça Aranha, em 1933. Em 1960, virou tema do filme “As Aventuras de Pedro Malasartes”, de Mazzaropi; em 1998, inspirou Renato Aragão a fazer um especial na Rede Globo. Em 2008, teve a história recontada por Ana Maria Machado, no livro “Histórias à brasileira: Pedro Malasartes e outras” (Companhia das Letras, São Paulo, SP).
Personagens antigos do imaginário infantil brasileiro estão saindo de cena. Integram a debandada o Boitatá, Curupira, Lobisomem, Mula-Sem-Cabeça, Saci-Pererê e tantos outros. Jeca Tatu, criação genial do escritor Monteiro Lobato, lançado um século atrás, sobrevive por um fio. Não se trata de superestimar o passado, mas de registrar um fenômeno. Vejo pelos meus netos que as crianças de hoje foram cooptadas irreversivelmente pelos heróis da TV: Bob Esponja, Galinha Pintadinha, Pantera Cor de Rosa  etc. Lamentar o que?
Rancho Português – Avenida Dos Bandeirantes, 1051, Vila Olímpia. Tel: (11) 2639.2077.
O Estribo – Largo Praça De Touros, 2080, Almeirim, Ribatejo, Portugal, tel. +(351)-(243)-579324.
RECEITA
SOPA DE PEDRA
Serve 8 a 10 pratos
INGREDIENTES
  • 1 kg de feijão vermelho (na falta, use o  mulatinho)
  • 400 g de orelha de porco
  • 300 g de chouriço (linguiça portuguesa)
  • 1 morcela (chouriço à base do sangue de porco)
  • 150 g de toucinho entremeado (com veios de carne)
  • 2 cebolas picadas
  • 2 dentes de alho picados
  • 1 folha de louro
  • 750 g de batatas cortadas em pequenos cubos
  • 1 maço pequeno de coentro, picado
  • Água quanto baste
  • Sal e pimenta-do-reino moída na hora, a gosto
  • 1 pedra bem lavada
PREPARO
  • Deixe o feijão de molho em água durante a noite.  Escorra.
  • Escalde e raspe a orelha de porco.
  • Em uma panela grande, coloque o feijão, junte todas as carnes, a cebola, o alho e a folha de louro.
  • Adicione água, tempere com sal, pimenta e cozinhe em fogo alto. Se necessário, junte mais água (fervente) durante o cozimento.
  • Retire as carnes à medida que forem cozinhando, corte-as em pequenos pedaços e reserve.
  • Quando o feijão estiver praticamente cozido, acrescente as batatas e o coentro. Deixe as batatas ficarem macias, retire a panela do fogo e introduza as carnes.
  • Passe para uma sopeira, coloque a pedra e sirva a sopa bem quente.
Receita do restaurante O Estribo, de Almeirim, em Portugal.

Fonte: Dias Lopes, em Veja

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